segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

DISCURSO DE FORMATURA DA TURMA 3001/2009


Hoje, eu não conseguirei dizer o que sinto. Pelo simples fato de não haver palavras para significar a saudade que sentimos que, até agora, conseguimos relativizar, fingindo que o tempo não passa. Mas passou. Estamos vivendo o último momento de nossa relação colégio-aluno, uma relação de profundo amor, respeito e identificação. Foi assim, desde o nosso primeiro encontro.

O ser humano é projeto e futuro, é vir-a-ser e nesta medida, não é. Ele é, em sua essência, vazio, passagem entre lábios abertos de uma boca de pedra. O homem é a ponte que seu corpo constrói, entre essas margens escarpadas. É, portanto, salto, perseguição do futuro com o gesto visceral, feito de músculos, nervos e sangue. O desejo humano é esse impulso, vontade do pulo que transforma o corpo em ponte. A cada dia – ou a cada noite – o abismo se renova. É preciso saltá-lo, rolar de dia a pedra que a noite devora, com seu rosto de treva. É a rotina cimentada com risos e lágrimas, esperanças e decepções, sonhos e saudades.

O homem é um deus quando sonha e um mendigo quando pensa. As coisas existem, plantadas e densas, e estão a nosso dispor. Para descobri-las, basta que tenhamos disponibilidade que baste. O que, de resto, não é fácil. É um dos tumultos da paz. Toda alegria longa e autêntica é severa. O que não impede que a alegria seja leve e tenha gosto de vinho. Constrói-se a própria alegria como quem constrói um barco: com ferramentas difíceis. No começo, há o machado do lenhador, derrubando o tronco. Depois, a abrasão do relento e do sol sobre suas fibras, curtindo-as. Em seguida, o sal do suor, o ato de entalhar, de escavar, os dentes cravados no coração da madeira – sua serragem sangrando. Um barco se constrói devagar, com fiel austeridade. Os gestos precisos – navegar é preciso! – se sucedem, trabalhando a matéria dia após dia. À noite se conversa, se ama ou se dorme. O dia é o tempo da construção do barco, sua forma emerge aos poucos, como uma asa que irrompe. Assim, meus queridos, é a alegria – como uma asa que irrompe. Não cai do céu, nem salta do mar, nem nos bate à porta de repente, como a visita de um anjo. Ela é o barco que projetamos e construímos, no espaço de nosso tempo – a nossa vida. Há que construir. Trabalhar. Operar o pão de cada dia, com diligente paciência. Por isso, não desistam da alegria, mesmo que frustrante sensação de dor nos tome de assalto, quando os desencontros acontecem, mesmo que de tempos em tempos. Pode ser um olhar que se perde, um amor que nunca mais veremos, um amigo que morre repentinamente. Pois nada pode ser mais frustrante do que esse quase tocar, esse quase sentir, esse quase caminhar junto, numa mesma direção, em paz finalmente. De forma alguma nos livramos do sentimento. Muito pelo contrário. Ele passa a ser matéria de outros sonhos, de outras esperanças e pode até voltar ao ponto de onde começou, pois os corações iguais se entendem mesmo na distância, mesmo nas impossibilidades, mesmo no intangível vazio que nos aparece quando as palavras são insuficientes. O que é isso senão um sentimento sem nome que não quer ir embora? Às vezes, os encontros marcados requerem esperas e intervalos harmonizadores. Não entre quem vai acabar, de uma forma ou de outra, se reencontrando lá na frente, mas sim para reverter, com equilíbrio e clareza, circunstâncias adversas, tornando passageiras as tormentas, vergando resistências, dissolvendo medos. São esses episódios que nos fazem pensar nas contradições do mundo, nas conseqüências de dar-se sem remissão, nas dores intrínsecas, nos encontros e desencontros do amor em todos os seus matizes. Eles também nos fazem crescer de alguma forma e nos levam a chamar o sofrimento pelo nome de batismo, sem cerimônia ou medo, como dois camaradas que se encontram de vez em quando e discordam sobre a vida, mas sem grandes derramamentos de sangue. É bom que seja assim. Hoje sei que a coragem é atributo essencial no movediço terreno do amor. O que me perturba é entender como ingressar neste terreno: por que entradas, por que frestas, por que chamados? Entre tantos modos de dizer, o mais precioso é aquele que se esgueira devagar e tateia com delicadeza. Não arromba a porta e não rompe o lacre. Não grita ao ouvido indisponível e não se mostra ao olhar dispersivo. O dizer mais valioso é este, que se constrói muito lentamente, quando um mede o outro e avança, passo a passo, dizendo-se mutuamente em uma confiança conquistada de um jeito que, suprema contradição, não pode ser dito em palavras, simplesmente porque elas ainda não foram inventadas. A beleza paradoxal de se confessar e se entregar a alguém, em total cumplicidade, nas menores coisas que montam uma personalidade, um caráter e um ser complexo, é o único modo de realmente se lançar no mar. Para estar à deriva e viver a plenitude de sermos tantos, é preciso encontrar no cais os mesmo olhos profundos que dizem sempre, incondicionalmente, “sim, eu sei e estou aqui”.

Há várias razões para sermos felizes. Há a alegria sem limites de Ana Flávia, que me ensinou a viajar pelas estrelas da esperança; há a capacidade incomparável de Bruno para reconstruir sonhos e sentimentos; há a lealdade incomum estampada nos olhos de Conrado; há a transformação incessante de Gustavo em um ser humano cada vez melhor; há Jéssica e o seu extravasamento de delicadezas que nos encanta; há o amor grande que habita o coração de Juciele e que ninguém entende, mas eu sim; há a minha doce e suave Julinha, cujo sorriso é a mistura perfeita de mel com doce de leite; há Juju, que me atingiu o coração como um raio de luz sem medidas; há Luiz Gustavo, o Poderoso Chefão do companheirismo e da generosidade que derrama sobre nós, seus amigos; há o Marcos Antonio, que ainda encontrará o sonho essencial de sua vida; há Maria Eduarda, a mais perfeita combinação de delicadeza e sensibilidade que já conheci; há Patrícia de tantos e tantos olhares sábios e silenciosos; há Patrick, um artista com uma capacidade de colocar-se no outro é tão grande quanto o seu talento; há Rafaela e seus sofrimentos transformados em gestos de grandeza; e há Silmara, que talvez tenha sido a que mais entendeu tudo isso que agora estamos sentindo – uma saudade grande, porque todos foram amados profundamente, nos amamos intensamente, desde o dia em que me apresentei para a minha primeira aula aqui no colégio – exatamente com vocês. Naquele instante, conheci pessoas que amaria para sempre – vocês. Só me prometam uma coisa: sejam felizes e lembrem-se que o amor soma desejo e paixão, é a arte das artes, é a arte final. É que o amor às vezes coincide com a paixão, às vezes não. Às vezes coincide com o desejo, às vezes não. Às vezes, coincide com a felicidade, às vezes não. E às vezes o amor coincide com o amor, às vezes não. Este é o paradoxo para o qual quis prepará-los. Chega um dia, portanto, que devemos aprender apenas as lições do sentimento, mesmo que seja uma saudade que já percebo ser instransponível como a que começo a sentir agora de cada um de vocês. Mas, sobreviverei, sobreviveremos todos, e um dia, nos reencontraremos, nos olharemos nos olhos e diremos que o amor que sentimos um pelo outro é indestrutível. Que Deus abençoe a todos....

12 de dezembro de 2009